POESIA DE FERNANDO PINTO RIBEIRO publicada noutras revistas, jornais, editoras, blogs e outros espaços.
Se por ventura tiver poemas deste Poeta e os queira colocar nesta página, ou acrescentar outras indicações, agradecemos desde já o contibuto.
CILÍCIO
A Inês Ramos
amar
sem loucura nem pecado.
beijar com as asas
soerguidas
num voo orientado
através de trincheiras sucessivas.
não mais ficar parado
na curva do prazer
(hão-de explodir um dia em vão as feridas
do laço em que te abraço a Lúcifer).
tenha o desejo fugido à nostalgia
da amarra no cais ultrapassado
e viva nas marés do dia-a-dia
rendido
à viril filosofia
da onda que vai vem contra o rochedo.
guardar
a seiva do segredo
e o pólen da pele
nos lábios túmidos
hoje e sempre
fiel
ao beijo heróico
mortal e permanente
em que te aguardo
em que me encontre
frontal
total
e eternamente.
(inédito)
Fernando Pinto Ribeiro
In: Antologia de Poesia “Os Dias do Amor –
Um poema para cada dia do ano”, Lisboa,
2009, Editora Ministério dos Livros, organizada
por Inês Ramos
(enviado por Inês Ramos - porosidade-eterea.blogspot.com)
(cedido por - www.ministeriodoslivros.com)
NAS RUAS DA NOITE
A Vítor Duarte
“Marceneiro Terceiro” –
meu padrinho no Fado.
No crepitar de estilhaços
de estrelas sobre os espaços
da Lisboa rua em rua —
crucificámos abraços
encruzilhados nos passos
que à noite a lua insinua
Nas nossas bocas unidas
sangrámos fados em feridas
dos beijos amordaçados —
salvámos vias vencidas
que andam pla treva perdidas
como num mar afogados
Cegos de sombras e lama
ígnea sede nos inflama
noutra inquisição divina —
bebemos o vinho em chama
que sanguínea luz derrama
no candeeiro da esquina
Embriagados de lume
sem dissipar o negrume
do fumo que nos oprime —
rezamos todo o queixume
do cio deste ciúme
uivo do amor feito crime
Crucificamos abraços
encruzilhados nos passos
que a noite nua desnua —
crepitantes de estilhaços
de estrelas gelo em pedaços
vem incinerar-se na rua
Fernando Pinto Ribeiro
(Versão definitiva, em 24-12-2008)
In: lisboanoguiness.sapo.pt
LEILÃO DA LATA
a Ana Briz
“O lixo é o riso dos mortos”,
in Em Memória, Pedro Mexia.
I
Bairros da lata vão acabar
e a bambochata vai começar
vão ladrar os gatos miar os cães
que mais valem cacos que três vinténs
da velha lata que já não presta
quem a arremata faz uma festa
carrossel da feira prà mocidade
viva a chinfrineira por caridade
panelas tachos tachos panelas
fêmeas e machos eles e elas
vão jogar na rifa do bailarico
uma chafarica num prédio rico
leilão da lata famintos fartos
dizem da caca cobras lagartos
vem o leiloeiro vende as barracas
com todo o recheio pulgas baratas
... vende com a droga do lavado lixo
o vício que engorda um homem num bicho
melga parasita quanto ela mais come
mais sede mais fome mais sangue o excita
II
Bairros da lata vão acabar
e a bambochata vai começar
vão voar as ratas do barracão
presas pelas patas dum gavião
leilão da lata rende o casebre
até a gata passa por lebre
rei da compra-e-venda do pardieiro
faz uma vivenda faz mais dinheiro
tão velha a lata do charlatão
aristocrata quer promoção
chapa guarda-vento ou guarda-lama
arte movimento carro de fama
leilão da caca homens farrapos
montam sucata……‘montoam trapos
anda cangalheiro rasa o barraco
saqueia o chiqueiro saco por saco
... vende com a droga do lavado lixo
o vício que engorda um homem num bicho
melga parasita quanto ela mais come
mais sede mais fome mais sangue o excita
III
Leilão da lata vai terminar
quando a barraca for pelo ar
pulam pelas matas gatos e cães
rastejam de gatas filhos-das-mães
leilão da caca vai terminar
coa velha lata pra a reciclar
morre o leiloeiro e um cão polícia
lambe-lhe o dinheiro numa carícia
... bairros da lata leilões da caca
e esta cantata toada chata
feita bambochata dum festival
têm de acabar é a hora exacta
ponto final
Fernando Pinto Ribeiro
(Da série “Rimas da Hora ao Rubro”.)
In: Antologia “Poetas de Sempre”
Ed. Cidade Berço, Guimarães, 2005
MÃO ABERTA
A imolar perguntas, degolar respostas
que a razão venera num altar de aborto,
sepultei nas vagas, despenhando encostas,
a torre nirvana, com o ídolo morto
como quem naufraga sobre as próprias costas
e o corpo cavalga contra o rumo torto,
hasteei nas trevas, já não de mãos postas,
o punho, em archote e a prumo, no porto
a escavar na terra os poros do povo
de onde irrompem chamas delirantes de água,
mato a velha sede renasço-a de novo:
lavado em suores da mais negra mágoa,
a pulso me arvoro – e esta mão que movo
reabro à semente noutras mãos afago-a
Fernando Pinto Ribeiro
In: Antologia “Poetas de Sempre”,
Ed. Cidade Berço, Guimarães, 2006
MADRIGAL EM DESPEDIDA
Dos meus olhos não escondas
que se acendem no teu rosto:
a chama que acende as ondas
são os beijos do sol posto
quando embalo e me adormecem
saudades em pesadelos
teus desejos amanhecem
no luar dos meus cabelos.
o adeus do teu sorriso
é a luz a que me aqueço:
no teu corpo me eternizo
quando do meu me despeço.
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetas do lavra…”,
jornal “O Gaiense”
REFLEXO INFLEXO
A
J. Leitão Baptista
Suicida ressuscito a perguntar quem sou
à regressiva bala do tiro que encarnei
focando à luz do espelho numa explosão de pó
o vírus abortivo no gérmen que o contém.
Do ventre sobre o dorso relapso e refém
num vómito renasço e arroto à morte certa
que, a circular nas veias, em órbita mantém
o foguetão lunar prá vida que desperta.
Na cauda que me aboca vergado sobre mim
abraço, mordo um réptil, devoro-o e sem matá-lo
acabo e recomeço a ruminar o fim.
Estrela após estrela, no astro mais remoto,
do cosmos para o vácuo disparo a cavalgá-lo
meu corpo contra o caos e causo o terramoto.
Fernando Pinto Ribeiro
(Versão final do poema, com o mesmo título, publicado com ilustração de seu irmão, Silva Ribeiro, na REVISTA DE LETRAS E ARTES “CONTRAVENTO” Nº 4 ( 1971 ), de que era Director e com direcção gráfica de Artur Bual)
CARM(a)E DO PÓ NATAL
A António Vera
na minha cama neva.
explode o arrebol.
da lama que me entreva.
deflagra no lençol
um ícaro da treva
em ácaros de sol.
naufraga sem farol.
regelo em minha cama.
cada manha final
transmudo a pele e a entrego
do morto matinal
ao corpo que trasfego
num outro meu igual
degelo. triunfal
submerso olhar me cega
na branquidão total
e em pó lunar eleva
da campa um deus mortal.
(na minha rua neva
da lua.
em seu natal.)
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Das Artes, Das Letras”,
suplemento do Jornal “O Primeiro de Janeiro”,
de 24 de Dezembro de 2007
FENIX
A Alice Fergo
Meu corpo reverdeceu
entre giestas queimadas
flor de bolor que irrompeu
sangue de cinzas e brasas
aureolada de orvalho
e arrulhos de pombas bravas
espantando nevoeiros
febre de trevas e larvas
minha nudez revelou
primaveras sepultadas
breve do pó borbotou
em sonâmbula borboleta
que a incendiar-se cremou
as asas de noite preta
Fernando Pinto Ribeiro
In: Antologia «Poetânea 3”,
Ed. HUGIN, Lisboa,
(Coordenação de Julião Bernardes)
ATRAVÉS DAS TREVAS
a J. Pinharanda Gomes.
Sem caminho
caminho um caminho escuro
de cada lado um muro
fechando os meus passos
que afundo
descalços
procuro
furo perfuro
e aprofundo o fundo
aos falsos espaços
de um mundo sem fundo
Quero ir sozinho
de assalto a percalços
por onde adivinho
o mato maninho
em que fazem ninho
asas e fracassos
- até aonde o sonho
rebenta medonho
clarão de estilhaços
rebelde a compassos
tacanhos escassos
ando vadiando
atrás destes passos
lassos e devassos
ando repisando
os estreitos traços
de todos os laços
ando vagueando
vou
- rodopiando
com os olhos baços
cegos de cansaços
já vejo
e adejo
longe nos espaços
Sem caminho
caminho
sozinho
em torvelinho de surdo solfejo
redemoinho
andejo rastejo rondejo
saltando cirando
voltejo voejo
recuo
paro pairo pulo
flutuo
desando
planejo
empeço tropeço
e caio de rojo
de jorro me esvaio
e arrojo
corro corro corro
até que me alcanço
cantando
chorando
chorando cantando
descaio desmaio
morro
descanso
- avanço avanço avanço!
Ao fim dos seus passos
além nos espaços
são aves meus braços
... daaaaanço ...
Fernando Pinto Ribeiro
In: "Poetânea 4", Ed. HUGIN, Lisboa, 2006 (Coordenação de Julião Bernardes) – anteriormente publicado na “Contravento” – Letras e Artes - n.º 1, Agosto de 1968 com ilustração de Luís Osório
QUANDO CANTO
a António Valdemar.
Quando canto
quando a chuva
vem do céu beijar o pó
ou quando o sol que me enxuga
vem comigo dormir só
quando canto
quando saio
deste corpo em que vou preso
e noutro corpo me atraio
me liberto do meu peso
quando canto
quando o raio
cai sobre mim quando caio
e me faço erguer ileso
Enquanto canto devoro
a maçã mais proibida
e canto por quanto jogo
partida logo perdida
enquanto canto me afogo
ou bebo o mar sem medida
ébrio do sal que namoro
e na sede me castiga
enquanto canto revogo
a lei da morte da vida
no encanto em que demoro
o beijo da despedida
desencanto em que des-canto
porque o canto a tanto obriga
Quando canto
quando a fome
tem o nome de alimento
quando a verdade consome
e dá sede ao pensamento
quando canto
quando choro
por prazer ou sofrimento
quando odeio quando adoro
em saudade e esquecimento
quando canto
quando imploro
deste (re)canto em que moro
outro canto que eu invento
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 4”, Ed. HUGIN,
Lisboa, 2006 – (Coordenação de Julião Bernardes)
REVERSO / INVERSO
A
António Teixeira e Castro
Em laço que me enlaço – escama a escama
no torço que retorço dorso mole –
encastro uma serpente e alastro a lama
até que do meu lastro enfim descole
o corpo que me abraço fardo cama
espelho de estilhaço num lençol
que arrasto de astro a astro e a arfar em chama
retraço pelo espaço lua e sol
desnudo a pele transmudo em escudo espesso
de alva ou escura cor falsa ou real
que dispo e visto sempre do avesso.
de mim nego e renego o desigual
ser que afinal não sou mas que pareço
ao ver-me cego e nu. do bem. do mal
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 4”, Ed. HUGIN,
Lisboa, 2006 – (Coordenação
de Julião Bernardes)
- Publicada mais tarde na revista
“Palavra em Mutação”, n.º 5 e
dedicada a A.T. Castro
SALMO
a João Bigotte Chorão.
Estou morto.
Mas a vida
lambe a minha pele em labaredas.
Sou noite.
Mas o dia
põe-me nos lábios papoilas
e coroa-me de espigas o cabelo.
Ceguei.
Mas a luz
vem poisar-me sobre as pálpebras
outras tantas borboletas inquietas.
Não oiço.
Mas o eco do silêncio
canta o hino imenso que eu não posso.
Não respiro.
Mas aspiro o alento
da maresia no vento.
Não sinto.
Mas pressinto: a minha alma arde
e uma chaga floriu na minha carne.
Não choro.
Mas tremem estrelas cadentes
nas lágrimas pendentes que sustenho.
Não canto.
Mas sopro nuvens
no pó que levanto.
Não ando.
Mas todo o meu espírito
vadia sem folga nem descanso.
Não durmo.
Hiberno: verme esvurmo limo e lama
no fosso em que me enfurno
aninho e faço a cama.
Não amo.
Sobre a seta quebrada no meu peito
raiva uma fonte de sangue
a incendiar a sede a incinerar a fome
dos homens dos bichos das florestas.
Não sonho.
Mas a fé
faz da esperança e da saudade
sentinelas do sepulcro
onde vivo o meu coração jaz
pisado por cavalos em tumulto.
Estou morto.
Mas o sol explode
a luz esplende
em plena primavera
neste corpo
que me prende
e me suspende
absorto.
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 4”, Ed. HUGIN, Lisboa, 2006 (Coordenação de Julião Bernardes)
PRELÚDIO
A Julião Bernardes
Poeta cantor
Canto
quando o vento fala
e as estrelas vêem
vêem que os poetas
são vozes de vento
seus olhos nos olhos
das noites despertas
com dedos acesos
em cegos planetas
canto
enquanto a lua chora
até o sol florir
lágrimas que morrem
de botões a abrir
canto
quando o mundo acorda
para eu não dormir
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea”,
Ed. HUGIN,2003
ÀS MENINAS DOS MEUS OLHOS
À poetisa e declamadora Armanda Ferreira e à sua obra inspiradora e à sua outra voz inspiradora, a de Carlos Duarte de Jesus – um no outro espelham o íntimo olhar que estas quadras interpretam.
As meninas dos meus olhos
nunca mais tive mão nelas
fugiram para os teus olhos
por favor deixa-me vê-las
as meninas dos meus olhos
se vão perder-se não sei
deixa-me ver se os teus olhos
as tratam e guardam bem
as meninas dos meus olhos
num castigo que é perdão
prende-as dentro dos teus olhos
quero vê-las na prisão
as meninas dos meus olhos
julgo vê-las espreitar
às janelas dos teus olhos
abertas de par em par
as meninas dos meus olhos
já não vejo aonde estão?
deixa-me ver nos teus olhos
se as guardas no coração
as meninas dos meus olhos
para poder encontrá-las
pedem por mim aos teus olhos
que falem quando te calas
Fernando Pinto Ribeiro
(in "Poetânea", Ed. HUGIN, Lisboa, 2003)
AUTO-ESTÁTUA
a António Manuel Couto Viana.
A madrugada nasça fria e branca
resgatem meu olhar punhais de luz
e eu fique no abraço desta pedra
seu fóssil incrustado numa cruz
meu gesto circunscreva o intangível
orgulho da estátua que desfiz
no barro ou no bronze flor e fruto
resumo da corola e da raiz
na vacuidade plena seja eu
sepulto pelo espelho da manhã
narciso do desejo que desnudo
envolto na poeira e na brancura
suspensa e já desfeita sobre mim
ausente de mim próprio cego a tudo
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 4”, Ed. HUGIN,
Lisboa, 2006 – (coordenação
de Julião Bernardes)
DE PROFUNDIS
Alguém
no breu da noite
fitou meus fundos olhos
alguém quer que eu me afoite
(desfolho-me e desfolho-os)
alguém
além
me chama
e estende hercúleos braços
(revolvo-me na lama
olhando
longe
os astros)
alguém gritou
- eu posso!
(e o eco devolveu
a escuridão do poço
à luz que vem do céu)
além do vão de um fosso
alguém a voz ergueu
voz de quem ninguém eu ouço
e aquém de quem sou eu
Fernando Pinto Ribeiro
in: "Poetânea " , Ed. HUGIN, 2003
Nota: Este poema sofreu posteriores alterações manuscritas pelo autor, no livro que nos ofereceu.
APÓTE(o)SE
a José Fernando Tavares
Dá-me, Profeta,
a rejeitada mensagem.
Faço dela a nossa espada
cortando a meta
de mostrar a tua imagem
na minha mão decepada.
Dá-me, Palhaço,
a tristeza de sorrir
frente ao riso que faz troça
deste fracasso
de brincarmos a brandir
o punhal que nos destroça.
Dá-me, Poeta,
o teu veneno, o teu mel
que corrói e deifica.
Desfere a seta
contra a torre de babel
da minha voz que te grita.
Fernando Pinto Ribeiro
ÀS MÃOS DE QUEM TRABALHA
a Fernando Rosas
Ó mãos que de mãos dadas cerrais punhos e dentes,
gretadas cicatrizes, o sangue a borbotar –
se as garras das raízes agarram as sementes,
calos e unhas rentes vão ter de as resgatar;
ó braços abraçados que vos alçais frementes
pilares de um mundo novo arcando o céu e o mar –
se às foices, se às bigornas se enroscam as serpentes,
nas eiras e nas dornas haveis de as esmagar.
Ó mãos já de mãos dadas, ó braços abraçados,
erguei o punho em chama que cega mas enxerga
a estrela d’oiro ao rubro, farol dos explorados –
se às armas mão em mão e aos braços em muralha
nem fome nem o medo, já nada, nada, os verga –
irmãos demos as mãos às mãos de quem trabalha!
Fernando Pinto Ribeiro
CANÇÃO DE ME EMBALAR
Esperanças
sempre crianças
suspensas
pensam voar ...
tensas
nos laços
que entranças
balancé
de eu baloiçar
até
que em braços
me alcanças:
– Vem
minha Mãe!
Vou
sonhar ...
Fernando Pinto Ribeiro
ESPELHO MÍ(s)TICO
a Ulisses Duarte
Passados dois milénios avivaste
meu rumo ao levitar-se para o céu
assumo (des)arrumo e apagaste
a imagem na memória de eu ser Teu
assim me vou deixar sem mais lembrança
ao espelho este Natal já no meu fim
um velho a olhar-se uma criança
nasceu e vai morrer Jesus (s)em mim
Natal de 2004
Fernando Pinto Ribeiro
LEITURA FINAL
a Elsa Rodrigues dos Santos
e a Figueiredo Sobral
na bruma que me esfuma
rua em rua
fonema por fonema
– leio a lua
plena
do poema
nua flutua
suprema
verso após verso
– veio
que eu me entreteço
imerso
diadema
larva de palavras
falena
verbo de verbenas
– me enleio
hibernal
coral num colar
a aureolar avenas
... e ao espelho lunar
do sol seminal
espasmo de açucenas
– soltei-o
além mar
num ponto-final
apenas
Fernando Pinto Ribeiro
LISBOA VAI ! (Marcha)
A bailar pela Avenida,
Num balançar de canoa,
vai de varina vestida
Rainha Dona Lisboa
Vai abraçar do Castelo,
Plo Tejo nos mares deitado,
O marinheiro mais belo
Das caravelas do Fado
Vai aonde a alma voa
Desde os mundos do passado
Até onde o mar entoa
Teu nome por todo o lado
(Refrão)
Vai, vai, Lisboa,
Santo Antoninho te guia
Da Estrela e da Madragoa
à Graça e à Mouraria.
Vai, numa boa,
Vai na vida ser vadia,
Vai, até que o andar te doa,
Rumo à Praça da Alegria!
Vai nos pregões a cantar
Camões, a Amália, Pessoa…
Vai na marcha popular
Rainha Dona Lisboa
(Refrão)
Vai de Alfama e do Dafundo
a São Bento e a Belém
E sobe à Rua do Mundo
Do Poço do Borratém …
Vai sair na Boa-Hora,
Com foguetes e balões,
A São Vicente de Fora,
de dentro dos corações
Fernando Pinto Ribeiro
MORREU O TEMPO
A Teixeira de Pascoaes
Ardem círios de lágrimas exaustas.
a noite desmorona-se em luar.
espalha-se do céu à flor das árvores
um hálito de alguém que já morreu
e vai chegar...
manhã de mãos de gelos sobre as faces
distende dedos de água nas raízes
de oculto coração de catedral.
clarins deflagram candelabros
e o sangue do silêncio estilhaçado
alastra no incêndio dum vitral.
cheira a musgo queimado por estios.
do hirto e seco leito me levanto
e deito-me ao quebranto
de insondáveis rios...
há quanto tempo o tempo?
ah quanto!
a cinza fez-se névoa sobre a campa
dum corpo insepulto a flutuar...
há quanto tempo há quanto quanto
nasceu esta manhã sem despertar
que eu espero sonho e canto
além da terra além do céu além do mar.
há quanto tempo já morreu o tempo
sou eu
sou eu o dia eterno
de te amar.
Fernando Pinto Ribeiro
PENSANDO EM TI
Acordei mas não te vi,
nem sequer o teu retrato
À cabeceira, sorri
na solidão do meu quarto.
Acordei como quem chama
por alguém que se deitou
No calor da minha cama
e de noite me deixou.
Pensando em ti... adormeci...mas acordei
Reconheci... que te perdi... e então chorei
Mesmo a dormir... julgo sentir... o teu calor
E o teu carinho... p'lo nosso ninho... oh meu amor
Acordei como quem ouve
o amor que bate à porta
Fui abrir, lá fora chove,
não há ninguém, noite morta
Acordei como quem chora
por alguém que já morreu
Neste quarto aonde mora
um fantasma, que sou eu.
Fado com letra de Fernando Pinto Ribeiro, música de Jorge Fontes, cantado originalmente por António Mourão
SONETO INCENDIÁRIO
A
Rodrigo Emílio
À sua Arte Poética
Esta noite de névoa não a quero
para quebrar a concha que me prende
à voz de búzio inerte e desespero
porque ninguém a ouve nem entende
Sob a sombra dos limos que se estende
viscosa nos abismos onde impero
minha alma suicida se transcende
num cântico profético de Nero
Quando a terra tremer com o trovão
do búzio rebentando moribundo
e a luz vier na lava dum vulcão
incendiar a treva em que me afundo
o Sol há-de explodir na minha mão
a fim de pegar fogo a todo o Mundo
Fernando Pinto Ribeiro
ÚLTIMO BEIJO
Último beijo
quando eu adejo
no teu olhar
olhando os céus.
Último beijo
para o desejo
incendiar
os beijos teus...
Último beijo
para num beijo
dizer adeus.
Último beijo
para o cortejo
de tanto beijo
que não te dei.
Último beijo
em que entrevejo
vir dar-te o beijo
que mais guardei.
Último beijo
dum sonho breve
sol num harpejo
à flor da neve.
Último beijo
para o festim
que um teu lampejo
fizer de mim...
Último beijo
para um festejo
antes do fim.
Fernando Pinto Ribeiro
ALCANCE
Levanto sobre o cais de além do rio
Meus braços para o mundo em mar aberto
E alcanço e desamarro o meu navio
No sonho de outro abraço em que desperto
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Louvor a Cascais – Antologia
Em Prosa e Poética – Do Passado
Ao Presente”, Cascais, 2003, com
Coordenação de Nídia Horta
AO FAIA DA VIDA AIRADA
A Fernando Guilherme Azevedo
Ó faia rapioqueiro,
bom garfo e boa colher,
manda ao diabo o dinheiro:
vem petiscar e beber!
Está paga a tua despesa,
coas notas que o fado inventa
na guitarra à portuguesa,
rica de sal e pimenta…
Vinho bom
faz aquecer,
mudar de tom
o triste fado
que só quer
cantar ao som
de um talher
mais bem temperado…
quer também
comer, beber
e ter mulher
de xaile traçado,
de saber
qual o sabor
que é a dor prazer
do amor fiado…
- Rei da farra!
uiva esfaimado,
- Uiva,
Fã da cigarra,
faia aluado!...
Pois não tens papas na língua
nem dás dito por não dito,
não queiras ougar à míngua;
«ficas teso mas bonito»!
Vida airada é vida airosa,
come bem, bebe do fino:
até vir a «dolorosa»,
é cor-de-rosa o destino!...
Fernando Pinto Ribeiro
In: Antologia “Poetas de Sempre”
Editora Cidade Berço,
Guimarães, 2006
(Emendas manuscritas pelo autor em
livro enviado ao lavra…Boletim de Poesia)
AO VINHO DA MINHA SEDE
A Eduíno de Jesus
Oh sede que te incendeias
nas veias do meu destino
e rebentas as candeias
das peias que não domino
oh sede de um novo sangue
num outro corpo divino
oh sede da minha sede
remorso em desatino
oh sede que se não mede
e que a si própria se bebe
noutra sede que adivinho
sem fonte no meu caminho
oh sede maldita sede
oh sede bendito vinho
água da sede sem sede
sede da sede infinita
que me limita e excede
oh se maldita sede
oh vinho sede bendita
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 2”, Editora
HUGIN, Lisboa, 2005, com
coordenação de Julião Bernanrdes
AZUL
A Miguel Barbosa
O barco de mármore fendeu-se.
Pela quilha perfurante da aventura
súbito olhar azul vazou-se
na mesma fluidez de céu e mar.
Nem centelha de água
nem lágrima de astro
foram prenúncio vestígio de naufrágio.
De mim não ficou rasto
adeus ou adágio.
Cego de azul vertigem tombei do mastro
de um grito sulcando o infinito.
Alastro
no abismo anil diluente
que me inundou
de azul
de mar
de céu
de aquém
de sempre
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 2”, Editora
HUGIN, Lisboa, 2005, com
coordenação de Julião Bernardes
CANTIGA PARA O REGRESSO
A Eduardo Nascimento
Ó terra, sinto as raízes
e as sementes da saudade…
regresso doutros países
viro as costas à cidade…
Plas ondas dum mar de espigas
vejo papoilas bailando…
cigarras trinam cantigas
e as formigas labutando…
hão-de alcançar tais fadigas
ai, Alentejo, até quando!?
- Cantai, ceifeiras amigas,
à torreira, fazei bando:
rapazes e raparigas
lá de longe estão chegando
por carreiros de formigas
labutando, labutando…
Suando o sal e a amargura
dos mar’s do amor marinheiro
ah, vou matar a secura
na frescura dum sobreiro!
Ai, Alentejo, até quando
hão-de alancar tais fadigas
quantos vivem amassando
no suor o pão das migas?
Às searas ‘stão voltando
as emigrantes formigas.
Trinai. cigarras, cantigas,
Já vos revejo reinando
entre papoilas e espigas
e as formigas ‘stão chegando!
Lembram fábulas antigas
labutando, labutando…
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 2”, Editorial
HUGIN, Lisboa, 2005, com
coordenação de Julião Bernardes
De novo minha Mãe
(Não, não morreu!)
Acorre ao meu degredo.
E o sono vem
do céu.
(Amanheceu
tão cedo!)
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Florilégio de Natal”,
Edição da Tertúlia Rio
de Prata, Lisboa, 2000
(Des)CANTE DO NOSSO ALERTA
A Luís Filipe Maçarico
Searas do Alentejo
semente da minha fome
sobreiros onde esbracejo
a sede que nos consome
a sede que me consome
a força em febre fermento
pão da terra que nos come
em vez de nos dar sustento
sem querer nos dar sustento
faz-nos sangrar na labuta
suar o sal dum tormento
que acende a seiva da luta
Fui pastor, sou corticeiro
conheço o custo à desgraça…
só ninguém sabe o dinheiro
que ela rende lá na praça
ela rende lá na praça
ou na banca do galego…
quem montar uma trapaça
cavalga qualquer borrego
cavalga qualquer borrego
toureia qualquer carneiro…
quando o cão de guarda é cego
arma-se o lobo em cordeiro
Se pão rijo é papa-açorda
e o óleo faz vez de azeite
quem é gordo mais engorda
quem magro é não se ajeite
quem é magro não se ajeite
que o cevado enfarda a pança
ninguém durma nem se deite:
o toucinho também rança
o toucinho também rança
bom vinho dá bom vinagre
quando o tempo é de mudança
a força faz o milagre!
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 2”, Editorial
HUGIN, Lisboa, 2005, com
coordenação de Julião Bernardes
DO MENINO
A
Paulo Brito e Abreu
Ó meu menino Jesus
se eu fosse Deus não deixava
que me pregassem na cruz
para sempre me ficava
no presépio nessa luz
do teu natal meu também
a olhar a estrela de alva
no olhar de minha mãe
ou duplamente encarnava
na criança em que fiquei
lembrança pó cinza e nada
anjo que jaz em Belém
(mãe minha mãe onde estás?
do teu menino não sei)
Fernando Pinto Ribeiro
In: Antologia “Poetas de Sempre”
Editora Cidade Berço, Guimarães, 2005
EM EPÍGRAFE
Ser poeta
é
amar o amor
dar receber
o amor profeta
amor cantor
até
sofrer a seta
sonhar
a dor sem dor
asceta
colher e desfiar
a flor secreta
fé
prazer sem meta
amor maior
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea”,
Editora HUGIN,
Lisboa,2003
FADISTA ALENTEJANO
“ó patrão, dá-me um cigarro,
acabou-se-me o tabaco:
o trigo que eu lanço à terra,
fumando, dá mais um saco...!” *
Searas do Alentejo,
semente da minha fome,
sobreiros onde esbracejo
a sede que nos consome.
- Fui pastor, sou corticeiro,
conheço o custo à desgraça,
só ninguém sabe o dinheiro
que ela rende lá na praça
...Ela rende lá na praça
ou na banca do galego:
quem montar uma trapaça
cavalga qualquer borrego
…Cavalga qualquer borrego,
toureia qualquer carneiro —
quando o cão de guarda é cego,
arma-se o lobo em cordeiro.
- Ó patrão, dou-te um cigarro,
já comprei o meu tabaco:
Do trigo que eu lanço à terra
Não te dou nem mais um saco!...
*Do cancioneiro popular (autor desconhecido)
Fernando Pinto Ribeiro
Poema interpretado pelo fadista alentejano João Sobral da Costa,
no CD “No Cais da Partida…e no Caos do Regresso”, dedicado
aos ex-Combatentes da Guerra Colonial, editado pela “Voxom –
Interfase – Estúdios de Gravação e Edições Musicais, Ld.ª”
HINO À VIDA
Vem dançar meu amor
faz de mim o teu par
e assim
ao te enlaçar
despida num aroma de flor
vai teu corpo em redor
bailar
na minha vida
vem amor
vem
movida em meus braços
flutuar
nas asas dos teus passos
vem voar
voar além dos astros
até aonde eu for
desflorar os espaços
entre o Sol e o seu calor
nos teus abraços
Dançando
tão bela
vem mostrar no salão
mulher
que és uma estrela
estrela
que zela meu coração
a noite
a noite dela
mais leve que o vento
solta os véus de luar
em movimento
pelo azul da luz florida
mil rubis da manhã
num abrir de romã
vão cobrir-te na rua:
vem bailar toda nua
num hino à vida!
Fernando Pinto Ribeiro
In: Antologia “Poetas de Sempre”
Editora Cidade Berço,
Guimarães, 2006
(M)ORFEU
A António Salvado
Escravo
de qual musa
(que acuso
ou que me acusa)
me deixo acorrentar
ao sono
em que ela suga
meu sonho
a naufragar
num beijo
morto à sede
que invejo
e bebo
ao mar
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 2”, Editora
HUGIN, Lisboa, 2005, com
coordenação de Julião Bernardes
NATAL DE MIM
Preciso
da mão carinhosa
que piso
seu gesto de afecto
um riso de rosa
uma rosa um sorriso
preciso de acordar desperto
dum sonho abjecto
cruelmente querido
me auto-exorcizo
num anjo e narciso
agrido o desejo
que em deus satanizo
preciso
do coração aberto
ebriamente ferido
guizo que me guia
à noite da agonia
ao dia de juízo
e num vivo aviso
à morta fantasia
preciso preciso
do sino indeciso
que enquanto agonizo
me reanuncia
menino aleluia
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Florilégio de Natal”,
Edição da Tertúlia Rio de Prata,
Lisboa, 2002
NÁUFRAGO
Do mar fundo a lua morta
Me desprende se desfaz
Veio à tona deu à costa
No meu corpo
Nele jaz
cada onda a cada gota
suga-lhe o sol
que minaz
o sal na sede retém
boca-a-boca
mal o toca
deixa-o atrás
vai e vem
donde
aonde
me desloca
de quem
na paz
sou refém
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Louvor a Cascais – Antologia
Em Prosa e Poética – Do Passado
Ao Presente”, Cascais, 2003, com
Coordenação de Nídia Horta
NOCTÂMBULO
O que me traz para a noite
já não é não o luto
da saudade
que reveste
quando nua
rua em rua
se incandesce
a lua
na cidade
o que me traz
para a noite
e eu desfruto
suspenso
embevecido
é a tua voz
de silêncio
cintilando
ao meu ouvido
som
sonâmbulo
em que me adenso
escuto
adormecido
Fernando Pinto Ribeiro
In: “PM – Palavra em Mutação”
n.º 4zero, Porto, 2004
PARTO FINAL
A Cândido da Velha
De novo me encontrei.
No termo do início que procuro
de novo sou menino.
Regressei
de mim clandestino
ao quarto-escuro
que esconde o meu destino
para Além
e acende atrás do muro
o astro de Belém.
De novo me embalei.
Quando cheguei
exangue moribundo
ao fim do mundo
meu berço me esperava
balouçava
suspenso no abismo
em que me afundo.
De novo tenho medo.
Que Papão
faz minha Mãe cantar
como em segredo
que a Vida não tem fim
nem solução?!...
De novo minha Mãe
(não, não morreu!)
acorre ao meu degredo.
E o sono vem
do céu.
(Amanheceu
tão cedo!)
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetânea 2”, Editorial
HUGIN, Lisboa, 2005, com
coordenação de Julião Bernardes
PERGUNTA AO FADO
Amália, diz-me quem sou:
pergunta ao mar e ao vento
por que razão seu lamento
dentro de mim se acoitou,
pergunta ao Fado que sabe
por que razão a saudade
na tua voz ecoou
que jamais eu sei quem sou
Amália, diz-me quem sou
por que razão se cruzou
no meu caminho esta cruz
feita de sombra e de luz,
de onde vim pra onde vou
na multidão da cidade:
pergunta ao fado que sabe
que jamais eu sei quem sou
Amália, diz-me quem sou:
pergunta ao Fado que pôs
na garganta a sede atroz
e que jamais se apagou
nesta ilusão de beber
todo o mar para saber
por que razão me afundou
Que jamais eu sei quem sou
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Viola Delta XXVII –
Poemas sobre Lisboa”,
Lisboa, 1999 – Coorde-
nação de Fernando Grade.
RAIZ EM FLOR
Foi Deus quem de mim te raptou
no adeus que então marcou
nosso encontro eternizado
Foi Deus quem este amor desterrou
para a saudade e o cercou
de seu mundo ilimitado
Foi Deus quem dos passos que eu pisei
aos teus braços me elevou
na amplidão do além
Foi Deus quem da raiz do que sou
de ti para mim brotou
ó flor do amor minha Mãe!
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Viola Delta XXXII – Poemas sobre a Mãe”,
com ilustração de Silva Ribeiro, Edições MIC,
Lisboa, 2001, coordenação de Fernando Grade
RELANCE
Olho ao espelho um adeus
estilhaçando o luar
entre as estrelas dos céus
e os fogos-fátuos do mar
Vejo o lampejo de um adeus
Num velho olhando o olhar
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Louvor a Cascais – Antologia
Em Prosa e Poética – Do Passado
Ao Presente”, Cascais, 2003, com
Coordenação de Nídia Horta