POEMAS DE FERNANDO PINTO RIBEIRO publicados pelo lavra... Boletim de Poesia e Editorial
À JANELA DO NATAL
O milagre duma estrela
Sobre a árvore da vida
Faz cintilar na janela
A família reunida
Do coração à lareira
De saudades ateada
Que bem sabe soa e cheira
A ceia da Consoada!
O meu olhar à janela
Dos olhos dessa criança
Vê raiar nos sonhos dela
Toda uma estrela de esperança
O campanário da igreja
Marca o canto matinal
Do galo que além festeja
A meia-noite e o Natal
E o frio branca moldura
Na paisagem aguarela
Cristaliza a iluminura
Do presépio à janela
Fernando Pinto Ribeiro
In:”Ecos…”, lavra… Boletim de Poesia, nº 8
Cantai comigo, cantai
Alegrai o coração:
O que morreu já lá vai
E a tristeza não dá pão!
Quem canta seu mal espanta
E nunca sente canseira
Se refrescar a garganta
Co um chazinho de parreira...
Ninguém se deve ralar
Por não ter muito dinheiro:
A rir, a rir, a cantar...
A saúde está primeiro.
Vou ser do fado e da farra
Já que o destino assim quis
Tocar viola e guitarra,
Pôr a cantar o País!
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Quatro X Quatro”, lavra… Boletim de Poesia n.º 9
FADO-NOSSO
No crepitar de estilhaços
de estrelas que dos espaços
vêm morrer sobre a rua
crucificámos abraços
encruzilhados nos passos
que a noite nua desnua
nas nossas bocas unidas
sa(n)grámos todas as feridas
dos beijos amordaçados
salvámos vidas as vidas
que andam na rua perdidas
como num mar de afogados
cegos de treva e de lama
e da sede que se inflama
numa inquisição divina
bebemos o vinho em chama
que sanguíneo se derrama
no candeeiro da esquina
embriagados de lume
sem dissipar o negrume
do fumo que nos oprime
rezámos todo o queixume
do cio deste ciúme
e do amor feito crime
crucificámos abraços
encruzilhados nos passos
da noite que nos desnua
crepitante de estilhaços
de estrelas que dos espaços
vêm morrer sobre a rua
Fernando Pinto Ribeiro
(Interpretações: de Francisco Pessoa, no Fado Franklin;
de Chico Madureira, no Fado Porto)
In: “Fado Nosso…Nosso Fado”, lavra… Boletim de Poesia n.º 9
S.O.S.
Voando a cavalgar o pensamento
centauro em foguetão águia lunar
vou de asas e de crinas contra o vento
num grito de Noé sulcando o mar
vou através da treva em fogo e em fumo
serpente a exorcizar o estertor
do sangue incendiado me ergo a prumo
ao rumo dos teus braços meu amor
(Inédito)
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poeta Convidado”, lavra… Boletim de Poesia, n.º 10,
com ilustração do seu irmão Silva Ribeiro
LIVRE-TROVADOR
A
Eduardo Sucena
- ao portuguesismo da sua obra
“Lisboa, o Fado e os Fadistas”
Eu perco as noites na farra
por causa duma cigana
que me acompanha à guitarra
nesta canção leviana.
O mundo já nos difama
vai-me queimar na quimera
dessa mulher a quem chama
pra meu castigo Severa.
Enquanto for primavera
quero ao lado a fadistagem
para cantarmos num brado
que o fado exige coragem.
Amigos falsos fugiram
mal me viram coa cigana
coitados…nunca sentiram
que um grande amor não se engana.
Sou um livre-trovador
que digam mal não me importa:
quando a paixão é maior
mais dor o fado suporta.
Quero cantar à Severa
o hino duma cigarra
e enquanto for primavera
danço com elas na farra!
Fernando Pinto Ribeiro
In: lavra… Boletim de Poesia n.º 11
e na Colectânea Poética “Valsa da Vida –
Louvor à Vida e aos seus prazeres”, lavra…Editorial, 2005
ILHA E MULHER*
Minha brisa repousante
minha noite mar de prata
minha estrela cintilante
rouxinol em serenata
meu anseio de esplendor
minha aurora boreal
meu delírio de cantor
minha ilha tropical
onde há búzios murmurando
melodias de sereias
em ondinas enlaçando
seu bailado em que te enleias
quando a lua vem redonda
e a rondar pelas marés
te desnua onda a onda
para ir beijar teus pés
Meu abrigo tão distante
minha infância de embalar
minha musa e minha amante
minha gruta de encantar
meu gorjeio de cigarra
meu desejo até final
meu navio minha amarra
Ilha mulher tropical
Fernando Pinto Ribeiro
In: “Poetas do lavra…”, lavra… Boletim de Poesia n.º 12
* Letra sobre tema e música prévia de Toni de Almeida, também seu intérprete.
Ganhou o Prémio da Melhor Letra do I Festival da Canção promovido pelo Grupo Cénico Amador de Maria Luzia Esteves, realizado no Fórum Lisboa, em Março de 2003.
SEMPRE E NUNCA MAIS
A
Rui Cacho
sempre e nunca mais
parto e desembarco
em porto sem barco
em barco sem cais
embarco e atraco
sem carta sem marco
sem rei nem arrais
nunca e sempre mais
abarco e abordo
como um peso morto
a pedra do porto
menos longe mais
da porta do cais
aonde demarco
padrões nacionais
e aporto mais perto
do porto do parto
que aperto que aparto
sempre mais e mais
a bordo e sem barco
abordo e abarco
o porto onde aparco
num mar ou num charco
porta donde parto
e marco os sinais
de menos ou mais
iguais portugais
nunca e sempre mais
no cais e no porto
sem porto nem cais
abordo e acordo
iguais desiguais
locais onde aborto
vivo nado morto
sempre e nunca mais
Fernando Pinto Ribeiro
In; “Colheita Especial”, lavra… Boletim de Poesia, n.º 13
À LUZ DO ABISMO
A
Nuno de Montemor
- Alto Poeta da Estrela
tão alto como ela.
Voando a rastejar desvão da vida
precipício de mim para transpor
nas garras duma águia malferida
sou réptil dum abismo e do horror
rasgado nas escarpas da subida
meu corpo que foi barro e é já bolor
levanta a sua estátua corroída
por larvas em meu sangue em meu suor
de rastos me elevei à minha altura
até cair exausto e moribundo
no leito matinal da neve pura
- asas de luz no azul do céu profundo
minha alma estropiada te procura
amor além da vida além do mundo.
Fernando Pinto Ribeiro
In: “diVersos”, n.º 4, Separata do
lavra… Boletim de Poesia n.º 12
ENCONTRO FORA DO TEMPO
In memoriam
de José Carlos Godinho Ferreira de Almeida, 1968.
Desces
da vida de além-morte
que me alumia
sereno vens
sereno e forte
servir de guia
apareces da noite
marcas o norte
rasgas o dia
na amargura
da minha escura crucial poesia
entreteces
com brandura e valentia
a ligadura duma ferida
que sangra tortura e arde
e só não cura quem nesta vida
fugindo à lida se acovarde
cresces na funda raiz
de português meu irmão
filhos do mesmo país
nascidos do mesmo chão
floresces na cicatriz
aberta no coração
(e aqui por quanto fiz quanto não quis
alheio à tua exemplar lição
ó meu irmão ó minha terra ó meu país
perdão milhões de vezes perdão perdão)
a sede que na terra me levanta
da fome que me afunda sob a lama
agora mais que nunca chora e canta
no rasto do teu vulto que exclama:
quando se vive e se morre
para cumprir o dever
sem medo
e sem alarde
- para morrer não é cedo
para viver não é tarde.
Fernando Pinto Ribeiro
In: “diVersos”, n.º 4, Separata do
lavra… Boletim de Poesia n.º 12,
com ilustrações de eduardo roseira
CANTIGA DE ESCÁRNIO
(caricaturando um dirigente corrupto)
Se de cândido vestias
o nome que disfarçavas
enquanto crespo escondias
que nem sequer te lavavas
- certo é que tresandavas
às mais podres porcarias
e tolo te alcandoravas
a estátua… e te despias!
Desmascarado saltaste
do cimo do pedestal
e gaguejando alegaste
por que cheiravas tão mal
- não porque te descuidaste
mas por seres um papão tal
que comeste e engordaste
emprenhando o capital...
(Da série Rimas da Hora ao Rubro, 1974-77)
Fernando Pinto Ribeiro
In: “literatura d’agrafo”, n.º 19, lavra…Editorial
AO NOVO DIA
A Joaquim Murale
Rebenta dos abismos às montanhas
o sangue que incendeia a madrugada
E um novo dia irrompe das entranhas
da terra finalmente fecundada
Foices malhos enxadas e gadanhas
e punhos semeando-se em rajada
contra lobos ocultos entre as brenhas
alevantam pendões de tudo-ou-nada
Acorda o novo dia. E desta vez
o sol nasce nas mãos do camponês
e põe-se na tigela do operário
Multiplicado o pão por quem o fez
não mais há-de ser hóstia que o burguês
consagre dando a fome por salário
Fernando Pinto Ribeiro
In: Colectânea Poética “Azul(v)ejo - Louvor ao Planeta Terra", lavra... Boletim de Poesia, 2004 e “literatura d’agrafo”, n.º 19, lavra…Editorial
BAILIA DO RIO DOURO
A eduardo roseira*
Ó rio corre contente
de Castela a Portugal
vem reinar na lusa gente
rumo ao porto em arraial.
Traz à dança da rabela
o rabelo e vai feliz
arrais ao vento e à vela
buscar a arcaica matriz**
Baila rio d’ouro
com essa riqueza
que eu guardo o tesouro
de tanta beleza!
Baila assim dourado
num bago de vinho
que eu brindo a teu lado
a um fado marinho!
Aperta no longo abraço
o Portugal maila Espanha
e concerta-os a compasso
no laço que mais convenha.
Vai afogar os desejos
além-ribas sobre o vale
nesse mar enche-o de beijos
de ouro de sol e de sal...
**Matriz: barco grande que no Douro se empregava, outrora, no transporte de mercadorias.
*Dedicado na Antologia “Poetas de Sempre”, Editora Cidade Berço, Guimarães, 2005
Fernando Pinto Ribeiro
In: Colectânea Poética “Correntes… –
Louvor aos rios”, lavra…Editorial, 2003
BARCAROLA SOBRE O TEJO
Nesta casquinha de noz
sobre o Tejo a baloiçar
vem amor e vamos sós
um do outro par a par
lantejoulas furta-cores
cintilando ao desafio
vão cegar-te se não fores
ver-me ao espelho no rio
vem zumbir feliz besoiro
nos fulgor’s do teu perfil
crivá-lo de estrelas d’oiro
de mil centelhas de anil
abro-te as asas barquinha
à brisa deste desejo
de ser’s uma libelinha
a qu’rer poisar-se num beijo
como os que a nossa casquinha
de noz recebe do Tejo
ergo-te as velas barquinha
ao sopro do meu desejo
sem saber donde nem quando
e até onde vamos nós
fugir do mundo ficando
um do outro e ambos sós
e eu sem amor naufragando
meu amor quase sem voz
vou-te amando a lume brando
nesta casquita de noz
Fernando Pinto Ribeiro
In: Colectânea Poética “Correntes… –
Louvor aos rios”, lavra…Editorial, 2003
PRELÚDIO
A
Julião Bernardes
Poeta cantor.
Canto
quando o vento fala
e as estrelas vêem
vêem que os poetas
são vozes de vento
seus olhos nos olhos
das noites despertas
com dedos acesos
em cegos planetas
canto
enquanto a lua chora
até o sol florir
lágrimas que morrem
de botões a abrir
canto
quando o mundo acorda
para eu não dormir
Fernando Pinto Ribeiro
In: Colectânea Poética “Azul(v)ejo - Louvor ao Planeta Terra", lavra... Boletim de Poesia, 2004
AO PÃO DA MINHA FOME
A
Maria Natália Miranda
Rompendo a terra
para a florir
e repartir
por toda a gente
o pão
é mão que encerra
todo o porvir
numa semente
o pão é mão
que dá o que recebe
e Deus lhe deu
fome que come
quanto sofreu
e pede à sede
água do céu
Fernando Pinto Ribeiro
In: Colectânea Poética “Azul(v)ejo - Louvor ao Planeta Terra", lavra... Boletim de Poesia, 2004
FADO CONVITE
A
Maria Luzia Esteves
- ao seu luminoso Teatro de Revista
Cantai comigo, cantai,
alegrai o coração:
o que morreu já lá vai
e a tristeza não dá pão.
Quem canta seu mal espanta
e nunca sente canseira
se refrescar a garganta
com chazinho de parreira…
Estou bem acompanhado
por este fado
que me consola,
com a guitarra, de um lado,
do outro lado, a viola.
Cantando venha comigo
quem for amigo
de uma noitada…
a cantar, é como eu digo:
a vida não custa nada!
Ninguém se deve ralar
por não ter muito dinheiro:
a rir, a rir, a brincar,
a saúde está primeiro.
Vou ser do fado e da farra
já que o destino assim quis,
tocar viola e guitarra,
pôr a cantar o País.
Fernando Pinto Ribeiro
Colectânea Poética “Valsa da Vida –
Louvor à Vida e aos seus prazeres”, lavra…Editorial, 2005
(FAN)FARRA FADISTA
A
Augusto Grácio
- ao Pintor de Lisboa (e do Fado)
Fadistas gente bizarra
da boémia de Lisboa
aventureiros que à farra
o fado amarra e magoa
quando afaga ou atordoa
os nervos duma guitarra
beijada bem abraçada
para que a dor lhe não doa
São tresnoitados arrebatados
que têm fama de rufiões
são corações a arfar em chama
cintilações de astro e de lama
almas num brado cantado vivido
soluço afogado em alarme e alarido
e peito rasgado à unha da garra
que na guitarra crava um gemido
O fado não é só pranto
na ronda das horas mortas
é patuscada no campo
e desgarrada nas hortas
toirada fora de portas
vinho a jorrar da torneira
ensejo de mais um beijo
vida airada bebedeira
Fernando Pinto Ribeiro
In: Colectânea Poética “Valsa da Vida –
Louvor à Vida e aos seus prazeres”, lavra…Editorial, 2005